Panteras enjauladas: a luta das mulheres pela profissionalização na Argentina

Diferenças acentuadas entre homens e mulheres não são exclusividade do Brasil. Ao redor do mundo, diversas ligas e federações investem muito mais em seus campeonatos masculinos do que femininos. 

Um episódio recente e chocante nem está tão distante de nós, mas bem aqui do lado: a Argentina. No início deste ano, as "Panteras", como são popularmente conhecidas no mundo vôlei, iniciaram uma luta pela profissionalização do esporte no país.

Capitã da seleção argentina, Julieta Lazcano é também uma das líderes que pede por igualdade entre gêneros no voleibol do país (Foto: FIVB)

País de uma liga só: a dos homens

Em 1996, a Federação Argentina de Vôlei (FeVA) criou a Liga Argentina de Vôlei, competição disputada entre as principais equipes do país. A liga foi administrada pela FEVA até 2003, quando os clubes se uniram para criar uma instituição específica, a fim de geri-la de forma independente, a Associação de Clubes da Liga Argentina de Vôlei (ACLAV).

Além da Liga Argentina, a ACLAV é a responsável pela organização da Copa ACLAV, assim como promoveu o extinto Super 8. A sua maior novidade é a Copa Libertadores, que estreou em 2018, uma competição internacional entre quatro clubes argentinos e quatro brasileiros. 

Além disso, a FEVA gerencia duas competições: a séria A2 da liga (segunda divisão) e a série B1 (terceira). Todas essas competições têm uma coisa em comum: foram criadas para os homens, sem versões para as mulheres.

A Argentina até tem uma liga feminina, criada em em 1997, mas bem longe de ser profissional. A liga feminina sempre foi gerida pela FEVA e os investimentos nas duas situações nem se comparam. Segundo dados do Colectivo Doble Cambio, uma mesma competição que paga 3.500 pesos argentinos às mulheres, paga mais de 35 mil pesos para os homens - 10 vezes mais. Estarrecedor!

No feminino, liga coordenada pela FeVA paga até 10 vezes menos (Foto: CBF Fotografia/Boca Juniors)


Esse problema é sentido pelas jogadoras. "Eu acho que a principal diferença é econômica, já que para a mesma atividade, os homens ganham muito mais dinheiro do que as mulheres. Em média, não conseguimos alcançar nem 10% do que ganham", conta a levantadora Antonela Curatola, jogadora do Vélez Sarsfield, que defendeu a seleção argentina até 2015.

Mas Antonela conta que os problemas vão bem além. "Outra grande diferença é o lugar que os homens têm na grande mídia. A liga masculina é televisionada regularmente, dois jogos por fim de semana; o feminino é televisionado apenas em reta final e por um canal menos assistido". 

Antonela Curatola defendeu a seleção adulta até 2015 e atualmente atua na liga argentina pelo Velez (Foto: Hernan Mauricio)


Adversária na liga, mas companheira na causa, a ponteira Maria Jose Prunetti, corrobora com as alegações de Antonela. "Os casos mais evidentes de diferenciação de gênero na Argentina, na minha opinião, são os salários, as transmissões e também as estruturas e condições de treinamento, assim como a assistência e até os horários de treino - sempre são os homens que escolhem e as mulheres se adaptam", adiciona Majo, de 21 anos, que defendeu o San Jose na última temporada.

O cenário é desanimador para uma experiente jogadora argentina, com passagens na seleção, e para uma menina em seu quarto ano de liga. A situação na Argentina chegou a um ponto absurdo e finalmente foi exposta à mídia. Muito disso deve-se à coragem delas, que não permitiram serem caladas. 

Majo Prunetti também sente diferenciações, desde os pagamentos aos tratamentos de saúde (Foto: reprodução/Instagram)

O fim da inércia

Chegou ao limite! Em 2020, as jogadoras argentinas resolveram agir e se uniram para lutar pelo profissionalização do esporte no país. O movimento começou com um tweet de Natalia Espinosa, heptacampeã da liga argentina, que se aposentou em 2019. 

"Foram muitas conversas com Santiago Darraidou (outro jogador de vôlei) sobre o impulso que deu a profissionalização do futebol feminino. É notável o crescimento do vôlei feminino. O papel das mulheres no esporte é visto de maneira diferente. É hora de dizer: profissionalização do vôlei feminino".

(Reprodução Twitter)


Mas essa história começa alguns dias antes desse tweet. No dia 9 de janeiro, as Panteras argentinas enfrentavam o trabalho de quatro anos: a disputa da vaga olímpica. Com o Brasil classificado no Qualificatório Mundial e o Peru completamente fragilizado nos últimos anos, todo mundo já esperava  que Argentina e Colômbia disputassem a última vaga da América do Sul - e assim foi.

A Argentina tinha saído de um escândalo há pouco mais de um ano, quando uma de suas principais jogadoras, Yamila Nizetich, foi expulsa por criticar publicamente a FeVA e seu técnico. O técnico acabou pedindo demissão e Nizetich havia retornado há poucos meses. 

Se as argentinas enfrentavam problemas, a Colômbia vinha com sua melhor equipe da história, comandada pelo experiente brasileiro Antônio Rizzola. A Colômbia venceu a Argentina nos dois campeonatos sul-americanos do ciclo, 2017 e 2019, ficando com a prata. Nos dois casos a Argentina ficou em quarto.

Para piorar, as colombianas jogavam em casa com uma torcida apaixonada e encantavam o mundo com sua simplicidade e qualidade técnica. Mas na hora da decisão, as panteras pararam a Argentina: 3 a 1 em cima da Colômbia, classificadas para Tóquio.

O fim do silêncio: Doble Cambio

A inesperada classificação argentina fez com que o voleibol feminino explodisse na Argentina. A vitória deu um fôlego para que Natalia Espinosa estimulasse a criação de um movimento na Argentina. "A publicação veio após a classificação, pois no voleibol argentino circulou o estereótipo de que para que solicitássemos melhorias, deveria haver bons resultados", conta a jornalista e ex-jogadora Florencia Corradini. E houve: não faltava mais.

A partir daí, jogadoras se uniram em um manifesto exigindo mudanças. O documento foi assinado por panteras da seleção olímpica, como Julieta Lazcano, Tatiana Rizzo e Elina Rodriguez. Esse movimento acabou unificado e se organizando no Colectivo Doble Cambio (Coletivo Mudança em Dobro, em português), formado por atuais e ex-jogadoras de voleibol, dirigentes, comunicadoras e pessoas próximas ao voleibol. 

"Em 10 de março foi a primeira apresentação formal do Colectivo Doble Cambio, realizada em uma palestra organizada por um deputado da cidade de La Plata. No evento, diferentes mulheres compartilharam suas experiências em seus campos, lembrando o dia 8 de março (Dia da Mulher)", conta Florencia.

Ícone do Colectivo Doble Cambio, movimento que pede direitos iguais entre gêneros para voleibolistas argentinas (Foto: reprodução/Twitter)


O Doble Cambio ganhou força e hoje representa diversas atletas argentinas, unificando o desejo da profissionalização do voleibol feminino. Através de sua conta no Twitter, o movimento mostra relatos chocantes de jogadoras, líderes, comunicadoras e mulheres relacionadas ao vôlei argentino.

"O objetivo do grupo é tornar visíveis as desigualdades legitimadas historicamente em relação ao âmbito feminino, reconhecer os direitos individuais e esportivos para criar ações que aspirem a melhorar as condições e oportunidades das jogadoras argentinas", explica Florencia Corradini. 

Até então, não existe uma posição firme da FeVA sobre mudanças no formato da liga argentina.

Jogadoras de Boca Juniors e River Plate, arquirrivais argentinos, se uniram pelo movimento de profissionalização da liga feminina (Foto: reprodução/Telam)

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