Grand Prix x Liga Mundial: competições semelhantes, prêmios distintos

Quando o assunto é seleção (ou times nacionais, como são chamados no exterior), a Olimpíada é a competição mais importante e tradicional do voleibol e por isso todo um ciclo gira em torno dela. Os Jogos Olímpicos encerram um ciclo no voleibol, composto por outras competições quadrienais: a Copa dos Campeões, o Campeonato Mundial e a Copa do Mundo. 

Como alternativa de competição anual, em 1990, a FIVB criou a World League (chamada no Brasil de Liga Mundial), uma competição que em seu primeiro ano reuniu oito seleções do topo do voleibol masculino mundial, com premiação total de U$ 1 milhão. Três anos depois, em 1993, a FIVB lançou a versão feminina do torneio, o Grand Prix, com o mesmo valor total em premiação. Porém, em 1993 a Liga Mundial já dava U$ 1 milhão somente ao seu campeão - e a disparidade dos valores entre homens e mulheres só estava começando.

Márcia Fu, atacante brasileira durante a disputa do bronze contra a Rússia em 1993, primeira edição do Grand Prix (Foto: reprodução/Youtube) 


Nem todas as edições tiveram sua premiação divulgada, mas o To Fly reuniu dados de uma série de fontes, tendo como base um estudo divulgado pelo portal World Of Volley e com informações dos sites Globo Esporte, Volleymob e da própria FIVB. Neste sentido, analisamos a premiação de dois formatos distintos: 

1. o valor recebido exclusivamente pelo campeão do torneio; 
2. o valor pago pela FIVB para os participantes durante toda a competição (incluindo o campeão). 

Nos dois formatos os participantes recebiam por etapa, colocação final na fase de classificação, premiações individuais e, em alguns casos, por cada jogo.

Premiação total 

O primeiro ano em que temos dados para realizar essa comparação é 1996, o final do ciclo olímpico de Atlanta. A FIVB pagou cerca de cinco milhões e meio de dólares em toda a Liga Mundial daquele ano, enquanto o Grand Prix teve premiação de apenas um milhão e meio.

O ápice da diferença entre os gêneros, segundo os dados do estudo, foi em 2006, quando o valor total da Liga Mundial foi de 20 milhões de dólares, enquanto o Grand Prix pagou um milhão, trezentos e cinquenta mil.

O gráfico abaixo ajuda a compreender a diferença nos investimentos das duas ligas.



Segundo dados do estudo, as mulheres nunca ultrapassaram a casa dos três milhões de dólares em premiação, enquanto os homens nunca tiveram menos de quatro em seu valor total. Injusto, não?

Premiação ao campeão

Outro fator injusto é apontado se compararmos o valor dado à seleção campeã de cada gênero. Os primeiros dados para essa comparação são do ano 2000, fim do ciclo de Sydney. A seleção feminina campeã recebia 150 mil dólares, enquanto a masculina recebia 782 mil.

Segundo os registros, a partir de 2004 o valor do Grand Prix subiu para 200 mil dólares e ficou nesse patamar até 2016. Em 2006, a seleção campeã do masculino passou a receber a incrível cifra de um milhão de dólares. Isso significa dizer que uma seleção feminina teria que vencer cinco edições do Grand Prix para ter direito ao mesmo que uma seleção masculina ganharia com apenas um título.


Fotos dos pódios da Liga Mundial e do Grand Prix em 2016. Comparação expõe diferença das premiações entre gêneros (Fotos: FIVB)

Vivendo de dentro

A pergunta que fica é: por que nunca foi feito nada para mudar isso? A resposta pode estar no sistema que geria o voleibol: uma federação internacional presidida por um homem, federações nacionais normalmente presididas por homens, técnicos e assistentes técnico homens.

Por seis vezes, Joyce Gomes, mais conhecida como Joycinha, abandonou suas férias e sua família, para servir à seleção brasileira e disputar o Grand Prix, mesmo ciente das condições de pagamento. A oposta conta que a diferença nos prêmios sempre incomodou as jogadoras. "A gente sempre comentava entre a gente, porque o prêmio do masculino era 1 milhão de dólares e o nosso era 200 mil. E a gente se perguntava, por que será que o deles é melhor?", relata Joycinha sobre a visão das jogadoras. "E a gente não entendia o porquê, o campeonato só mudava praticamente o nome e o formato, mas era promovido pela mesma federação (FIVB)".

Camisa 11 da seleção brasileira, Joycinha já disputou seis edições do Grand Prix (Foto: Gazeta Press/reprodução)


O Grand Prix sempre foi uma competição muito injusta devido aos seus vários graus de exigência. Eram quatro (posteriormente cinco) semanas de treinamentos e jogos consecutivos, normalmente em outros países - era muito raro que houvesse jogos do Grand Prix no Brasil. E acreditem: seu formato era mais intenso do que o da Liga Mundial. 

Até 2011 os homens faziam dois jogos por semana contra o mesmo adversário, enquanto as mulheres faziam três jogos contra adversários diferentes. Isso significa que, por semana, as mulheres estudavam, viam vídeos, treinavam de forma especial para três tipos de confrontos e os homens para apenas um. 

Vítimas de todo esse processo, as jogadoras acreditavam que não podiam fazer muito. "O Grand Prix era era um torneio internacional e não adiantaria que apenas uma seleção se revoltasse contra esse sistema, era preciso união", diz Joyce. E, segundo a jogadora, foi exatamente o que começou a acontecer em 2016. As seleções se uniram por um posicionamento da FIVB e a imprensa entrou de vez no jogo. 

Ninguém sabe ao certo como esse processo se iniciou, mas uma imagem postada em um tweet foi um marco simbólico dessa história. A imagem era uma montagem que colocava lado a lado dois jogadores: Natália Pereira, do Brasil, com um cheque de 200 mil dólares pelo título do Grand Prix em 2016 e Marko Ivovic, da Sérvia, com um cheque de 1 milhão de dólares pelo título da Liga Mundial em 2016. Isso explodiu tudo!

Sem respeito, sem Graça!

Uma das únicas semelhanças entre as duas fotos acima está no senhor de terno ao centro dos cheques simbólicos. Ele é a mais importante e talvez mais controversa figura do voleibol mundial: o sr. Ary da Silva Graça Filho, presidente da Federação Internacional de Voleibol (FIVB).

Ex-jogador, Graça foi presidente da Confederação Brasileira e da Confederação Sul-americana. Em 2012 se tornou a maior autoridade do voleibol mundial: o presidente eleito da FIVB. Mas a carreira de Graça não é marcada só por glórias, muito pelo contrário. O gestor chegou a ser acusado de desviar verbas do voleibol brasileiro e se envolveu em polêmicas com nomes como o técnico Bernardinho e os jogadores Bruno, Murilo e Jaqueline. 

Ary Graça, ao centro, ao lado dos cinco presidentes das confederações continentais em sua campanha à reeleição como presidente da FIVB (Foto: FIVB)


Graça era quem, naquela ocasião, deveria responder por esses problemas, mas um contato do Globo Esporte com Ary foi rejeitado. A FIVB respondeu através de sua assessoria que "as jogadoras estavam cientes das condições". Mas não adianta fugir da Globo e Ary Graça foi surpreendido em uma entrevista durante a final do Grand Prix 2016, em Bangkok, na Tailândia, e finalmente se manifestou sobre a diferença nas premiações. 

“O Grand Prix é uma competição que vem sendo feita há anos, mas estava começando a emperrar um pouco. Agora, nós retomamos com toda a força. [...] Nós vamos acabar com isso (diferença nas premiações). Essa observação é bem a propósito, tem tudo a ver. Nós arrecadamos mais no masculino e  tem sido assim. Mas agora estou muito na Ásia. Se for o que me disseram, vou ter dinheiro para pagar às jogadoras”, disse Ary Graça ao Globo Esporte. 

Mas a culpa não pode cair simplesmente no colo de Ary. Tanto a Liga Mundial quanto o Grand Prix foram criadas pela FIVB durante a gestão do presidente mexicano Rubén Acosta Hernandez (1984-2008). Ou seja, foi Hernandez o grande sustentador dessa diferença, inclusive quando os valores chegaram a quase 20 vezes mais para o masculino. Seu sucessor, o chinês Wei Jizhong, manteve o mesmo padrão que acabou herdado por Graça.

A queda do Grand Prix e da Liga Mundial

Depois de toda a repercussão, em 2017 já foi possível sentir alguma diferença e finalmente a FIVB tomou uma atitude. Nesta edição, o valor do prêmio dado ao campeão foi de 600 mil dólares. Mas a diferença ainda existia e o valor da Liga Mundial se manteve em 1 milhão de dólares. Ou seja, o maior prêmio da história do Grand Prix de Voleibol Feminino foi 40% menor do que o dos homens. 

Um ponto curioso é que os tradicionais cheques não apareceram em 2017, um ano depois que o mundo inteiro colocou a discrepância do pagamento por gênero lado a lado. Neste mesmo ano, a FIVB anunciou a extinção do Grand Prix e da Liga Mundial, criando assim uma nova competição unificada: a Volleyball Nations League (conhecida no Brasil como Liga das Nações de Vôlei ou pela sigla VNL). Diferente das competições anteriores, o valor é o mesmo para os campeões: um milhão de dólares. 

Levaram-se 27 anos para que o órgão máximo do voleibol mundial percebesse que homens e mulheres deveriam receber os mesmos salários. Mas ainda é possível questionar algumas atitudes do órgão com relação à diferença entre gêneros e a mais evidente delas está no dia dos jogos. As seleções femininas disputam a VNL em diferentes países de terça a quinta-feira, enquanto os homens jogam de sexta a domingo - quando há maior público e mais disponibilidade de transmissão dos jogos. Isso nos leva a crer que, talvez, ainda haja algum resquício na diferenciação de pagamentos.

O To Fly entrou em contato com a FIVB a fim de comentar a questão dos pagamentos, mas não obteve resposta. E adivinhem o que aconteceu em 2018, primeiro ano da VNL? Sim, os cheques voltaram. 

Seleção dos Estados Unidos ostenta prêmio de 1 milhão de dólares da VNL 2018 no retorno dos cheques simbólicos, ausentes em 2017. Em 2019, eles voltaram a marcar presença (Foto: FIVB)

Comentários